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Carmem

 

 
Ela acordou diferente naquele dia. Abriu os olhos, observou o quarto, silenciou a mente. Desejou do fundo da alma não ser mais Carmem. Quis outra identidade, na verdade, quis mesmo ser homem. Sentiu a vontade tomar forma. Como se os anjos lhe tivessem ouvido, foi mudado seu sexo. O espelho mostrava agora um corpo de homem.

Lembrando cenas de um filme antigo, lento, mudo e em preto e branco, brotaram as primeiras impressões do homem que se tornara. Sentiu medo da vida. Cobrança por respostas impossíveis. Fuga diante de experiências assustadoras. A sensação de insignificânica estampada num físico indiferente. A rejeição ao sentimento natural de admiração por outro homem. A violência travestida de tédio. O ouvido fechado às necessidades do corpo. A sexualidade do ego. O amor escondido no silêncio.

Era novamente Carmem. Correu ao encontro do marido. Olhos nos olhos. Uma vida em um segundo. Viu no bigode a fraqueza de caráter. A gravata desajeitada que espelhava suas atitudes tortas. Os sapatos recheados pela arrogância. E a boca, apenas ausência de desejo. Então, como se pudesse compreender que sua alma estava nua, ele chorou. E Carmem o beijou com a sinceridade da primeira vez.

Cadernos de Poesias

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